Por Thiago Couto, Marcelo Sasso e Leandro Almeida
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A Lei de Improbidade Administrativa brasileira, formalmente conhecida como Lei nº 8.429/92, constitui um marco fundamental no ordenamento jurídico nacional, visando coibir condutas lesivas ao patrimônio público e à moralidade administrativa. Promulgada em 2 de junho de 1992, esta legislação estabelece as normas e os procedimentos para responsabilização de agentes públicos que pratiquem atos de improbidade.
A improbidade administrativa, conforme definida pela lei, abrange condutas que atentem contra os princípios da administração pública, tais como legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência. Ela se manifesta em três modalidades: enriquecimento ilícito, dano ao erário e violação aos princípios administrativos. Delineando um conjunto de sanções civis, que podem ser aplicadas aos responsáveis pelos atos ímprobos. Além disso, prevê a possibilidade de ressarcimento integral do dano causado ao erário.
A aplicação da Lei de Improbidade Administrativa exige rigor na análise dos elementos fáticos e jurídicos de cada caso, assegurando-se o devido processo legal e o amplo direito de defesa aos acusados. A atuação do Ministério Público, dos órgãos de controle e do Poder Judiciário desempenha um papel fundamental na efetivação dos objetivos desta legislação, contribuindo para a preservação da probidade no exercício da função pública.
Por sua vez, a Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, trouxe mudanças significativas na Lei de Improbidade Administrativa, que passaram a vigorar imediatamente após sua publicação. Essas alterações representam um avanço importante no campo do Direito Administrativo Sancionador, pois limitam o uso indiscriminado da ação de improbidade, reservando-a para casos mais graves. Agora, para que um ato seja considerado ímprobo, é necessário que haja a comprovação do dolo direto, o que exclui condutas consideradas pequenas transgressões sem má-fé, antes passíveis de serem enquadradas como improbidade.
A irretroatividade da lei penal no âmbito do direito sancionador é uma norma fundamental, exceto quando beneficia o réu, conforme Artigo 5º, XL, da Constituição Federal. Em outras palavras, a norma constitucional preconiza a irretroatividade da lei mais severa e a retroatividade da lei mais benigna.
Mesmo que o preceito esteja originalmente voltado ao âmbito do Direito Penal, no contexto do Direito Sancionador, como na hipótese da improbidade administrativa, o princípio constitucional da retroatividade da lei mais benéfica deve ser aplicado tanto no campo administrativo quanto judicial sancionador.
Portanto, a retroatividade da lei mais benigna é parte integrante desse princípio constitucional e se estende a todo o exercício do jus puniendi estatal, inclusive em relação à nova Lei de Improbidade Administrativa. Como uma ramificação do direito punitivo, o Direito Administrativo Sancionador está sujeito à retroatividade mais benéfica, o que implica que novas leis que restrinjam a atividade repressora do Estado devem ser aplicadas de imediato, retroagindo para alcançar os casos em andamento.
Essa aplicação retroativa da Lei nº 14.230/2021 foi reconhecida pelo Tema 1.199/STF, vejamos:
‘Ementa: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. IRRETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA (LEI 14.230/2021) PARA A RESPONSABILIDADE POR ATOS ILÍCITOS CIVIS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA (LEI 8.429/92). NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DE REGRAS RÍGIDAS DE REGÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E RESPONSABILIZAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS CORRUPTOS PREVISTAS NO ARTIGO 37 DA CF. INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 5º, XL DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL AO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR POR AUSÊNCIA DE EXPRESSA PREVISÃO NORMATIVA. APLICAÇÃO DOS NOVOS DISPOSITIVOS LEGAIS SOMENTE A PARTIR DA ENTRADA EM VIGOR DA NOVA LEI, OBSERVADO O RESPEITO AO ATO JURÍDICO PERFEITO E A COISA JULGADA ( CF, ART. 5º, XXXVI). RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO COM A FIXAÇÃO DE TESE DE REPERCUSSÃO GERAL PARA O TEMA 1199. 1. A Lei de Improbidade Administrativa, de 2 de junho de 1992, representou uma das maiores conquistas do povo brasileiro no combate à corrupção e à má gestão dos recursos públicos. 2. O aperfeiçoamento do combate à corrupção no serviço público foi uma grande preocupação do legislador constituinte, ao estabelecer, no art. 37 da Constituição Federal, verdadeiros códigos de conduta à Administração Pública e aos seus agentes, prevendo, inclusive, pela primeira vez no texto constitucional, a possibilidade de responsabilização e aplicação de graves sanções pela prática de atos de improbidade administrativa (art. 37, § 4º, da CF). 3. A Constituição de 1988 privilegiou o combate à improbidade administrativa, para evitar que os agentes públicos atuem em detrimento do Estado, pois, como já salientava Platão, na clássica obra REPÚBLICA, a punição e o afastamento da vida pública dos agentes corruptos pretendem fixar uma regra proibitiva para que os servidores públicos não se deixem “induzir por preço nenhum a agir em detrimento dos interesses do Estado”. 4. O combate à corrupção, à ilegalidade e à imoralidade no seio do Poder Público, com graves reflexos na carência de recursos para implementação de políticas públicas de qualidade, deve ser prioridade absoluta no âmbito de todos os órgãos constitucionalmente institucionalizados. 5. A corrupção é a negativa do Estado Constitucional, que tem por missão a manutenção da retidão e da honestidade na conduta dos negócios públicos, pois não só desvia os recursos necessários para a efetiva e eficiente prestação dos serviços públicos, mas também corrói os pilares do Estado de Direito e contamina a necessária legitimidade dos detentores de cargos públicos, vital para a preservação da Democracia representativa. 6. A Lei 14.230/2021 não excluiu a natureza civil dos atos de improbidade administrativa e suas sanções, pois essa “natureza civil” retira seu substrato normativo diretamente do texto constitucional, conforme reconhecido pacificamente por essa SUPREMA CORTE (TEMA 576 de Repercussão Geral, de minha relatoria, RE nº 976.566/PA). 7. O ato de improbidade administrativa é um ato ilícito civil qualificado – “ilegalidade qualificada pela prática de corrupção” – e exige, para a sua consumação, um desvio de conduta do agente público, devidamente tipificado em lei, e que, no exercício indevido de suas funções, afaste-se dos padrões éticos e morais da sociedade, pretendendo obter vantagens materiais indevidas (artigo 9º da LIA) ou gerar prejuízos ao patrimônio público (artigo 10 da LIA), mesmo que não obtenha sucesso em suas intenções, apesar de ferir os princípios e preceitos básicos da administração pública (artigo 11 da LIA). 8. A Lei 14.230/2021 reiterou, expressamente, a regra geral de necessidade de comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação do ato de improbidade administrativa, exigindo – em todas as hipóteses – a presença do elemento subjetivo do tipo – DOLO, conforme se verifica nas novas redações dos artigos 1º, §§ 1º e 2º; 9º, 10, 11; bem como na revogação do artigo 5º. 9. Não se admite responsabilidade objetiva no âmbito de aplicação da lei de improbidade administrativa desde a edição da Lei 8.429/92 e, a partir da Lei 14.230/2021, foi revogada a modalidade culposa prevista no artigo 10 da LIA. 10. A opção do legislador em alterar a lei de improbidade administrativa com a supressão da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa foi clara e plenamente válida, uma vez que é a própria Constituição Federal que delega à legislação ordinária a forma e tipificação dos atos de improbidade administrativa e a gradação das sanções constitucionalmente estabelecidas ( CF, art. 37, § 4º). 11. O princípio da retroatividade da lei penal, consagrado no inciso XL do artigo 5º da Constituição Federal (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”) não tem aplicação automática para a responsabilidade por atos ilícitos civis de improbidade administrativa, por ausência de expressa previsão legal e sob pena de desrespeito à constitucionalização das regras rígidas de regência da Administração Pública e responsabilização dos agentes públicos corruptos com flagrante desrespeito e enfraquecimento do Direito Administrativo Sancionador. 12. Ao revogar a modalidade culposa do ato de improbidade administrativa, entretanto, a Lei 14.230/2021, não trouxe qualquer previsão de “anistia” geral para todos aqueles que, nesses mais de 30 anos de aplicação da LIA, foram condenados pela forma culposa de artigo 10; nem tampouco determinou, expressamente, sua retroatividade ou mesmo estabeleceu uma regra de transição que pudesse auxiliar o intérprete na aplicação dessa norma – revogação do ato de improbidade administrativa culposo – em situações diversas como ações em andamento, condenações não transitadas em julgado e condenações transitadas em julgado. 13. A norma mais benéfica prevista pela Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa –, portanto, não é retroativa e, consequentemente, não tem incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes. Observância do artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal. 14. Os prazos prescricionais previstos em lei garantem a segurança jurídica, a estabilidade e a previsibilidade do ordenamento jurídico; fixando termos exatos para que o Poder Público possa aplicar as sanções derivadas de condenação por ato de improbidade administrativa. 15. A prescrição é o perecimento da pretensão punitiva ou da pretensão executória pela INÉRCIA do próprio Estado. A prescrição prende-se à noção de perda do direito de punir do Estado por sua negligência, ineficiência ou incompetência em determinado lapso de tempo. 16. Sem INÉRCIA não há PRESCRIÇÃO. Sem INÉRCIA não há sancionamento ao titular da pretensão. Sem INÉRCIA não há possibilidade de se afastar a proteção à probidade e ao patrimônio público. 17. Na aplicação do novo regime prescricional – novos prazos e prescrição intercorrente – , há necessidade de observância dos princípios da segurança jurídica, do acesso à Justiça e da proteção da confiança, com a IRRETROATIVIDADE da Lei 14.230/2021, garantindo-se a plena eficácia dos atos praticados validamente antes da alteração legislativa. 18. Inaplicabilidade dos prazos prescricionais da nova lei às ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa, que permanecem imprescritíveis, conforme decidido pelo Plenário da CORTE, no TEMA 897, Repercussão Geral no RE 852.475, Red. p/Acórdão: Min. EDSON FACHIN. 19. Recurso Extraordinário PROVIDO. Fixação de tese de repercussão geral para o Tema 1199: “1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei”. (STF – ARE: 843989 PR, Relator: ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 18/08/2022, Tribunal Pleno, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-251 DIVULG 09-12-2022 PUBLIC 12-12-2022)
Neste caso, discute-se, à luz do artigo 37, § 5º, da Constituição Federal, a prescritibilidade dos atos de improbidade administrativa imputados à recorrente, os quais alegadamente decorreram de conduta negligente na condução dos processos judiciais em que atuava como representante contratada do INSS, sem a demonstração do elemento subjetivo dolo.
A questão de repercussão geral delimita-se em definir se as inovações introduzidas na Lei de Improbidade Administrativa devem retroagir para beneficiar aqueles que, eventualmente, tenham praticado atos de improbidade administrativa na modalidade culposa, inclusive no que diz respeito ao prazo de prescrição para as ações de ressarcimento.
Sendo assim, a tese firmada pelo STF foi: 1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.
Em síntese, a decisão do STF estabeleceu quatro pontos principais: 1) Para que um ato seja considerado improbidade administrativa, é necessário comprovar a responsabilidade subjetiva, ou seja, a presença do elemento subjetivo DOLO nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei de Improbidade Administrativa (LIA); 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021, que revogou a modalidade culposa do ato de improbidade administrativa, não tem efeito retroativo devido ao artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, o que significa que não se aplica a situações já julgadas ou em processo de execução de penas; 3) Entretanto, a nova lei se aplica aos atos de improbidade administrativa culposos praticados antes de sua vigência, desde que não haja condenação definitiva, pois a lei anterior foi expressamente revogada; nesses casos, o tribunal deve avaliar se houve dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional estabelecido pela Lei 14.230/2021 não retroage, ou seja, as novas regras passam a valer a partir da data de sua publicação.
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